domingo, 8 de novembro de 2015

ENGANEI O MAESTRO



 Norberto Seródio Boechat

Década de 50. Meus pais, pensando investir em eventual talento musical, presentearam-me com um acordeom Todeschini de oitenta baixos. Eu era tão franzino que meu tio, Antonio Seródio, apelidava-me de Tiro Seguro, um vermífugo que, na época, levou muitos ao estado de choque em decorrência de brutal desidratação. Se Steven Spielberg houvesse me encontrado carregando o instrumento, outra seria sua imagem para o E.T. Impossível saber quem transportava o quê, tal a desproporção. Considerava-o um trambolho. Penso até que poderia ter alma, mas ignorou não ter sido bem recebido. Sentia-me ridículo abrindo e fechando o fole. Além disso, não conseguia ver as notas da mão esquerda, os baixos, que faziam o acompanhamento. Necessário guiar-me pelo dó, marcado por um furinho. Todavia, compreendendo que para meus pais aquele era um grande presente, assumi a tarefa. Como dito às costas, ia, semanalmente, a Bom Jesus para as aulas com o maestro Sebastião Ferreira − puro descendente de nossos irmãos, vindos das atuais Angola, Moçambique e Zaire.
          Aulas ao lado da prima, Sucena, no salão principal do sobrado de Dr. Anibal Amim, cuja sacada voltava-se para a praça principal. Antes do início, o maestro saboreava o lanche preparado por minha tia, Nininha (Alzira Seródio Amim), com invejável avidez. Só, então, mostrava os caminhos dos bemóis. Mário Mascarenhas, decano dos acordeonistas do Brasil,  editava as partituras no Rio de Janeiro. Exibiam nas capas seu grupo de alunas. Algumas vezes, somente a exuberante Conchita, sua esposa.
O maestro marcava o ritmo batendo uma das mãos sobre a mesa e quando errávamos uma nota, impaciente pegava nossos dedos e os colocava sobre as teclas corretas. Analisem as músicas: Ondas do Danúbio, Sobre as Ondas, Moonlight Serenade, Olhos Negros, La Cumparsita, e íamos nós...
          Certo dia, enquanto aguardávamos para a lição, o observei subindo a escada. Muitos degraus.  Numa das mãos, pasta com partituras. Baixinho, pescoço atarracado, óculos de aros redondos, encarava, lento, a escalada: colocava um dos pés num degrau e, em seguida, o outro. Daí se lançava para o seguinte. Alcançava o alto arfando. Visão de superação. Transportei, mais tarde, aquela subida para sua coragem na vida, para as demandas que certamente enfrentara. Desígnios fantásticos o fizeram escolher a música numa época em que esta era um desafio ou permitida somente aos da elite. Colossal foi sua força de vontade, alavancada por natural talento e pelo desejo de fazer sons, criar musicalidade, realizar-se comandando instrumentistas na triunfal regência de uma banda. Raciocinei sobre o quanto crescera na vida. E, quem sabe, o que teria passado na primeira metade do século vinte para vencer as dificuldades, o bullying psicológico e o preconceito num país ainda culturalmente exalando o ranço do execrável período rompido por Isabel. Lutou muito o baixinho até chegar à frente das bandas Lira Operária Bonjesuense e Lira 14 de Julho, de Rosal, vibrando, radiante, a batuta.É o que vislumbro agora, lembrando-o na escadaria.
         O acordeom de Sucena resplandecente: um Scandalli vermelho, tinindo de novo, com três abafadores prateados. Quando ela olhava para o teclado, exibia a arqueada e libanesa sobrancelha. Mais parecia uma guerreira alada com escudo vermelho brilhante. Tocava muito bem e poderia estar nas fotos do professor Mário Mascarenhas.
 Meu papel como acordeonista foi apreciado. Exibia-me até nos circos itinerantes que aportavam na vila. Meus pais se orgulhavam vendo o filho “tirando” valsas e tangos. Confesso agora que enganei o maestro durante todo o tempo em suas aulas: sabia ler as notas musicais, mas as deixava para trás, pois tocava tudo de “ouvido”. E ele certo de que tinha um aluno brilhante...
        Não sei se o acordeom de Sucena ainda existe. O meu dissolveu-se nos bailes do salão do Bebeto e nos terreiros dos morros. Coitado, para mim foi tarde...
Gostava mesmo de piano. Meu pai adquiriu um, de Antonio Tinoco, que fora seu companheiro de vereança em 1947. Fui buscá-lo em Bom Jesus na picape Willis, emprestada por Fernandinho, marido da prima Tamires Boechat. Transportei-o com absoluto cuidado para que as vibrações da estrada de terra não o danificassem. Não via a hora de vê-lo instalado em nossa casa. Nós o colocamos na antessala da copa. Abri-o. Meus pais ao lado. Toquei um hino que era entoado por meus avós na comemoração do Natal. É claro, Agostinho e Iracema choraram, mas a música, a partir daquele momento, marcou muitos outros em nossa fraternidade. Meu irmão, Agostinho, também se revelou.
          Tal qual no acordeom, tentei acompanhar o traçado musical. No entanto, o “ouvido”, mais uma vez, não permitiu. Desisti dos bemóis e fui levando... Tinha a audácia até de mergulhar num dos noturnos de Chopin e, heresia maior, na Grande Fantasia para o Hino Nacional de Gottschalk. Concentrava-me no momento de nosso hino, tomado sempre pela emoção. No silêncio da roça, na simplicidade do povo, os sons impregnavam. As pessoas prendiam a respiração. Foi uma época em que a nação encontrava-se envolvida pelo civismo.
           Hoje vejo que o piano ficou perdido no tempo... Minha limitação quanto à leitura das notas calou-o. Não me satisfazia, isto é, jamais chegaria a uma sonata de Beethoven. Interrompi. Meu neto, Rafael, mostra-se promissor. É bom no entardecer ouvir seu som quando ele toca. Permanece repleto de história e de saudade.
            Esta página, na verdade, vale pelo maestro, para o que ele representou e, por certo, ainda para muitos em Bom Jesus. Segundo a historiadora Vera Maria Viana Borges, gostava de ser chamado “Professor Bastião”. E foi de fato mestre, não necessariamente das letras do alfabeto, mas das notas, eternas marcas dos sons da vida.


Norberto Seródio Boechat é bonjesuense/pirapetinguense

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