segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

FATALIDADE




 Norberto Seródio Boechat


O prazer de tio Nelinho era caçar inhambus. Para tal, usava apitos esculpidos por ele mesmo em madeira especial. Lembravam miniaturas de canhões de século XVIII: fenda estreita numa das extremidades e na outra, perfeito orifício. Encimando a peça, pequena abertura cujo diâmetro determinava a pureza do pio.

Certo dia, me convidou a acompanhá-lo. Iria testar um novo apito. Naturalmente, às escondidas, pois meus pais não admitiriam uma criança embrenhar-se pela floresta atrás de um tio “desligado”. Assim conhecido porque não se preocupava com coisa nenhuma, absolutamente nada. Na verdade, um personagem macondiano.  Vivia. E a vida para ele consistia em passar cada dia com o que este lhe oferecia. Tudo era satisfação. Nada o perturbava. Na face, um eterno sorriso de bonomia.  Creio mesmo que era desprovido de qualquer ambição, pois a caça preferida, arisca e pequena, não era suculenta. Depois de frita, encolhia-se em ridículo esqueleto.

Saímos. Manhã de sábado. Meus pais foram a Bom Jesus.

Deveríamos buscar as proximidades de uma nascente onde houvesse bebedouro natural. O tio na mata parecia um animal. Seus passos não faziam barulho, ao contrário dos meus, estalando galhos secos. Andamos por cerca de uma hora. Encontramos, finalmente, o local ideal. A água jorrava por entre duas pedras cobertas por musgos e se acumulava numa pequena represa, contida por um galho caído. Procuramos macega próxima e nos escondemos. Sentamo-nos encostados a pequeno barranco. Apoiou a espingarda sobre uma das pernas e com o apito iniciou seu “chamado”. Aguardamos.

O pequeno lago era bastante frequentado: rolinhas, juritis, melros e sanhaços. Nenhum deles o interessava. Tal qual Fernão Dias, sua esmeralda era o inhambu. Meio dia, ele apitando. Focos de pequeninos sóis atravessavam a folhagem e se refletiam na superfície da água. De repente,não muito longe, uma resposta. Pausadamente o tio repetia, ora mais, ora menos intenso. A ave retrucava. Preparou a espingarda. Seu instinto mostrou-se com o cuidado ao levá-la à posição de tiro: silenciosa e lenta coreografia. Os músculos da boca contraídos, soprando intermitentes. O silêncio quebrado somente pelos “chamados’”. A ave chegou à clareira. Pescoço instintivamente alongado, girava a cabeça igual a um periscópio. Com passos cuidadosos aproximou-se do pequeno lago. Descontraída, ciscou e catou algumas sementes. Sentiu-se segura na sua mata, na sua fonte, sob as queridas e conhecidas árvores. Esticou uma das asas, espreguiçando-se.

 O dedo já estava no gatilho. Mirava firme .Abrandou a respiração. Fisionomia se crispou, músculos se tensionaram. A expressão mudou tal qual alguém que, com pleno comando, vai matar, vai destruir. O sorriso transformou-se em comissuras rígidas, dentes trincados. A face de bonomia transmutou-se. O ser se reorganizou. A hora do matador.

 De soslaio, quase não o reconheci e achei que estava na floresta com um estranho. Até medo senti, tal a metamorfose diante da possibilidade de matar, de confirmar, através da pressão de um dedo o outro lado, o cruel. Às vezes, me lembro daquela imagem do tio, ao acompanhar a atual ferocidade do homem.Até pensei, com pena do animal, em fazer um ruído para enxotá-lo,mas, ao mesmo tempo, igual ao caçador, estranhamente curioso para o desenrolar do prenunciado.

Mantive-me quieto. A ave aproximou-se da margem. Como Narciso, contemplou, ingênua, a imagem na lâmina líquida. A última. O Universo, em cumplicidade, decidiu parar todas as forças da natureza e aguardou, estacou. O destino se faria. O ambiente impregnou-se de fatalidade.  O tiro retiniu em meu ouvido. No pequeno lago, penas subiram e se espalharam acima do corpo estrebuchando. Por momentos, fiquei surdo. Naquele instante invadiu-me a noção do impotente destino, do fatalismo absoluto.Com tantos inhambus na floresta, por que aquele respondeu ao pio de Tio Nelinho?O atirador exultou. O sorriso voltou grande.Gladiador sobre sangue recebendo os uivos da multidão. Acomodou a espingarda no ombro, colocou a ave no embornal e retornamos.

Mais tarde, no decorrer da vida, em muitas situações espantei-me ao lembrar o ruído do tiro:  uma bala arrebentando a cabeça de um menino no conjunto do alemão. O crânio do Presidente Kennedy, estilhaçado tal qual os tecidos do inhambu. Kurt Cobain ouvindo a última nota antes da desintegração. Pedro Nava desenhando em respingos vermelhos a tarde de uma praça na Glória ou Getúlio, comedido, escondendo dentro do peito os fragmentos que o eternizariam. Balas.

Momentos. Decisivos. Trágicos. Extremos. Dor.

Somente tio Nelinho, o “desligado”, sorriu após o estrondo.

Aquele seu instante mostrou a dualidade do homem, a implacável e atávica dualidade. Escondida e disfarçada pelo teatro diário, mas pronta para, súbito, arrebentar o destino. Isso me faz pensar que não poderemos prever nosso ato seguinte, a magnitude da resposta a um desafio. Qual momentâneo demônio reside em nós? Por certo, o homem é uma interrogação. É uma possibilidade extrema e inimaginável. De que maneira saber qual será o próximo inhambu?


Norberto Seródio Boechat é bonjesuense/pirapetinguense


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