sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

ATÉ QUANDO, OUTROS AYLANs?


 Norberto Seródio Boechat


Há 43 anos, a foto da menina Kim Phuc, flagrada nua pelo fotógrafo Hunk Cong Ut, fugindo do ataque napalm, no Vietnan, mostrando indescritível horror na fisionomia escandalizou o mundo. Foi um momento de conscientização universal.
E neste ano, em setembro, a foto do menino Aylan, de três anos, encontrado morto numa praia turca estarreceu o mundo. A cena, chocante, abalou. O homem deve ter reformulado conceitos, juízos, horrorizado com o inaceitável absurdo dos conflitos no Levante.
Em sua curta vida em Kobani, na Síria, o garoto e o irmão assustaram-se inúmeras vezes com o barulho de bombas e visão de labaredas e fumaça. É provável que em seus três aninhos, quando os impulsos são dirigidos aos mais profundos afagos do amor e às brincadeiras infantis, não tenha compreendido porque sua cidade era modificada a cada dia, por que ouvia gritos à noite? E, mais dramático, o que terá sentido no pequeno barco, junto ao irmão Galip no colo dos pais, Abdullahe Rehanna, tentando desesperadamente permanecer juntos na inquietação do frágil bote? De repente, soltou-see mergulhou o mergulho da inocência no mar histórico.
Aylan é uma tentacular vítima, não só da guerra civil em sua pátria, mas da complexidade de seus vizinhos, acossados por embates étnicos, políticos e econômicos. A família Assad, que governa seu país há décadas,− ejá teve filhos iguais a ele− , somente elaé responsável pela morte de mais de 270 mil pessoas.
Destino pré-concebido por jogo de poder entre vizinhos e outras potências mundiais, num tabuleiro de incongruências:
A Arábia Saudita, suavizinha, é aliada dos EUA no Oriente Médio. Predominantemente sunita. Sede de grandes centros de peregrinação religiosa, em Meca e Medina, paradoxalmente abriga importantes escolas ultraortodoxas do islamismo como o WAHABISMO, doutrina fundamentalista. Concorda com os EUA e aliados nos ataques aéreos à Síria e no Iraque,vizinho, contra o Estado Islâmico (EI).
Os EUA querem a renúncia de Bashar al-Assad, o ditador sírio, mas este, de família ALAUITA, (sub grupo xiita), tem apoio da Rússia que bombardeia posições rebeldes a Assad, argumentando, também,visar o EI. Aylan não cresceu para entender para entender posições antagônicas descarregando bombas sobre seu país.
Vladimir Putin, da Rússia, quer um papel relevante no Oriente Médio e, por isso, está ao lado de Assad, fornecendo armas.
Turquia, vizinha, de maioria sunita, apoia a coalizão liderada pelos EUA e as forças rebeldes sírias. Permite que os EUA usem bases aéreas em seu território.
Noutro sentido, negociações sobre programas nucleares entre EUA e Irã causaram mal-estar  entre os principais aliados dos americanos na região: Israel, vizinho, e Arábia Saudita.
Os fatos recentes mostraram que não se concretizaram os propósitos democráticos da “primavera árabe”. O que se viu foi o desmoronar de países do Oriente Médio, estabelecidos há décadas, como Iraque, Afeganistão, Líbia e sua Síria, além de outros sob ameaça, tais comoIêmen, Jordânia, Turquia, Arábia Saudita. O garoto Aylan certamente cresceria sem compreender a razão do envolvimento de tantas e tão desconcertantes forças, impedindo-o de vislumbrar horizontes através suas fronteiras.
Maomé. Sunitas. Xiitas.
A absoluta maioria muçulmana é pacífica e ordeira frente a uma minoria de fanáticos que se lança ao terror em nome do Alcorão. No entanto, este não convida os crentes a matar, mas sim ao respeito e o bem entre os homens. A história do islamismo ou islã começou numa caverna na Arábia. (Uma outra, foi em manjedoura). Segundo a tradição, o arcanjo Gabriel (o mesmo que revelou a Isabel) apareceu a Maomé e o orientou a falar sobre princípios divinos. Isso teria ocorrido por volta de 610 d.C. Maomé nasceu em Meca, provavelmente em 570 d.C. Seus escritos deram origem ao Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. Após sua morte, houve disputa quanto à sucessão, quando duas correntes se tornaram majoritárias, os xiitas e os sunitas. Os xiitas, formados pelos seguidores de Ali, primo e genro de Maomé. Os sunitas, mais numerosos e mais radicais, acreditavam que o profeta não deixara herdeiros legítimos.
Maomé, por certo, jamais imaginou que seus ensinamentos poderiam redundar em lutas e, muito menos que em seu nome um grupo terrorista colocasse o mundo ocidental em alerta máximo.
O Estado Islâmico surgiu da rivalidade entre muçulmanos xiitas e sunitas. Sem importante significado bélico, no entanto, em pouco tempo evoluiu para uma ameaça global, conquistando um território do tamanho da Itália. Em sua formação, há um personagem, o terrorista jordaniano Abu Musab al-Zarqawi que, ligado a ex-funcionários da ditadura de Saddam Hussein, deu os primeiros passos para sua formação. Foi morto em 2006 por ataques aéreos americanos. A partir de 2011, a guerra civil na Síria deixou um vácuo de poder em muitas áreas do país. Os integrantes do EI, sob novo líder, Abu Bakr al-Baghdadi, aproveitaram esse momento, cruzaram a fronteiram e ocuparam espaço. Bashar al-Assad, ditador sírio, foi conivente e ignorou a invasão, contando com o grupo para lutar contra os rebeldes que tentam derrubá-lo. O EI estabeleceu, assim, sua sede em Raqqa, na Síria. Em seguida, 2014, invadiu as cidades ao norte do Iraque, criando um governo baseado na charia, a lei islâmica. Enquanto isso, Aylan e Galip cresciam.  O ambiente de caos foi propício ao EI. Acresce-se que ele projeta calcadas esperanças aos muçulmanos: defesa dos sunitas, sobretudo no Iraque onde eram opressores, e agora oprimidos pela maioria xiita nesse país; a promessa de formação de um Estado de fato nos territórios ocupados; o questionamento de partilhas territoriais em 1920, quando da derrocada do Império Otomano; e, finalmente, a grande busca de reconhecimento internacional por sua identidade. Dessa maneira, a perspectiva de alcançar taispropósitos torna o EI simpático a milhões de muçulmanos em todo o mundo. Na verdade, trata-se de um processo de grande arcabouço histórico e cultural, provavelmente de difícil resposta a soluções armadas.
Convivemos, então, impotentes com uma luta pluralizada, de complexos objetivos, levando por calcinar ainda mais a terra árida, um dos berços da civilização. E o combustível é volátil, já queentranhado no “patriotismo” de “estados” os mais diversos, tribos, seitas, etnias, crenças. Aylan, nesse meio, igual a Kim Phuc foi um gigante. Virou símbolo da crise migratória. Em imagem entre areia e mar, seu pequenino corpo sobrepujou a imprensa universal que, antes, jamais conseguiu mostrar de maneira tão clara o cinzento horror da paisagem, contrastando com sua camisinha vermelha.




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